O ato de escrever (reproduzir o simbolo gráfico) depende de uma série de pré requisitos. Envolve tonicidade muscular (domínio da força e preensão fina), dominar a direção, ter autopercepção da posição da mão, orientação espacial (lateralidade), necessita de ritmo motor (relaxamento-contração), de postura (eixo postural), além do reconhecimento do ato (função imaginária, imaginar a letra ou desenho antes de fazer).
Não basta ter um conteúdo para copiar e seguir as instruções sobre o contorno das letras. Todas essas habilidades devem ser automatizadas, ou seja, treinadas (do jeito certo) até que o cérebro incorpore como uma habilidade adquirida, envolvem o desenvolvimento da motricidade global. Para a maioria de nós estas tarefas anteriores foram realizadas, a contento, durante as brincadeiras na infância, no entanto, muitos alunos dessas gerações mais novas vão ter dificuldades psicomotoras que refletirão na aprendizagem da escrita, principalmente por não terem desenvolvido esses pré-requisitos com frequência e intensidade suficientes para alcançar o automatismo.
Uma simples brincadeira de pega-pega por exemplo, inclui uma série de elementos da motricidade global, que serão repetidos posteriormente pela mão no movimento de escrita. Ao brincar de pega-pega a criança precisa correr, mudar bruscamente de direção, frear com os pés e reequilibrar o corpo todo, movimentar o corpo de forma harmônica em várias direções, ou seja, o corpo está envolvido em uma tarefa que demanda equilíbrio (controle tônus/muscular), posição, direção, força, lateralidade (sempre viramos bruscamente para o lado da lateralidade definida) e ritmo, e todo esse desenvolvimento vai se repetir nas tarefas de motricidade fina.
É preciso esclarecer que devemos orientar a criança para escrever uma letra legível e dentro de um padrão de tamanho, pois o conceito de letra bonita é muito difícil de ser compreendido e alcançado. Considere ainda que a letra possui um componente genético, ou seja, herdamos alguns desses aspectos de nossos pais.
A letra pode ser melhorada se for explicado minuciosamente o que se espera da criança. Então mandar a criança fazer uma letra bonita é totalmente ineficaz, é preciso explicar exatamente qual traço ela precisa melhorar, como por exemplo fechar corretamente a letra “O”, ou subir e descer o T pela mesma linha, ou manter o “m” com arcos menores, ou seja, a instrução precisa ser direta.
O melhor caminho é trabalhar um aspecto de cada vez, por exemplo: primeiro treina-se o traçado da letra (por onde começa e termina), depois treina o tamanho das letras curtas e das letras longas, sem corrigir o traçado, depois treina-se o tamanho das palavras em relação a linha. Cada passo deve ser estimulado em sessões curtas por um período considerável de tempo, então passar várias folhas de exercício podem piorar o quadro, o ideal seria um treino curto :2 linhas, 2 vezes por dia, por 5 dias, com a criança sabendo exatamente o que se espera dela, e não cobrando todos os itens de uma vez.
O caderno de caligrafia pode ser utilizado como uma boa ferramenta, e não como única ferramenta de estímulo, se for utilizado com a frequência e duração adequadas (pouco exercício, mais sessões curtas).
Dessa forma o exercício de caligrafia poderia contribuir para completar um ciclo, entretanto se existe um grande esforço ou dificuldade para a realização desses exercícios, fica obvio que é preciso recuar e oportunizar o desenvolvimento psicomotor global dessa criança. Quando não damos atenção a esse aspecto aumentamos as dificuldades e as sequelas, pois há um risco grande da criança rejeitar as atividades que envolvem escrita e desenho, comprometendo outras áreas de seu desenvolvimento, já que à medida que o aluno avança na escola, os desafios relacionados à escrita continuam a aumentar.
Alunos que têm dificuldades para escrever são frequentemente acusados de procrastinação, preguiça ou falta de esforço, quando na realidade não alcançaram a maturação dessa função motora que afeta a velocidade, a fluência e a legibilidade da escrita.
O comprometimento da motricidade fina pode chegar a um nível em que se faz necessária a intervenção terapêutica: quando a criança apresenta disfunção da memória motora, falta de automação da formação das letras (não consegue lembrar rapidamente os traços das letras) e os déficits de produção grafo motora já explicitados acima.
Com o aumento do uso abusivo de tecnologia na infância também temos observado o aumento de casos de crianças com atraso psicomotor. O problema não é exatamente a criança pequena utilizar o tablet ou o celular, a questão é ela não ter acesso aos outros estímulos que seu organismo precisa para se desenvolver. Então se uma criança não brinca, não explora o ambiente com seu corpo e sentidos e com o outro, não frequenta espaços desafiadores (parques, ambientes naturais), nesse caso o uso de tecnologia pode sim ser prejudicial.
Se os pais já oportunizaram estímulos adequados, a escola já fez intervenções por um período de 6 meses e a criança ainda demonstra discrepância significativa entre expressão oral, capacidade de leitura versus sua produção escrita, pode indicar uma lacuna funcional, nesse caso a melhor conduta é buscar um profissional habilitado, principalmente da área de Terapia Ocupacional, que poderá avaliar e planejar as melhores condutas para o avanço dessa criança.
Em suma: o caderno de caligrafia usado de forma adequada pode auxiliar no desenvolvimento da escrita, mas é preciso avaliar o desenvolvimento psicomotor da criança, não apenas a mão. Quanto mais cedo a criança recebe atenção especializada, mais rápido o problema é resolvido.
Dicas Gerais:
- Escolha um aspecto de cada vez para treinar/estimular: posição da mão, escrever sobre a linha, traçado de uma letra, tamanho da letra, espaço entre as palavras;
- Você não está estimulando só a mão, também estará agindo a nível neurológico, então ofereça exercícios usando o principio de alta frequência e baixa duração. (micro sessões por mais dias dão mais resultados, afinal você não iria para a academia esperando fazer todos os exercícios no mesmo dia e ter o resultado final no dia seguinte);
- Observe outros aspectos das atividades de vida diária em que a criança possa estar atuando de forma irregular. Quando a criança treina e é competente em atividades como: arrumar a cama, escovar os dentes, guardar objetos, pentear o cabelo, organizar o próprio armário, limpar e arrumar a mochila, reflete nas atividades escolares;
- Estimule o desenho e a pintura livre;
- Pare antes que a criança queira parar, então planeje atividade de forma que a criança perceba o começo e onde termina, assim ela fica mais motivada para executar o treino;
- Não demonstre suas frustrações diante das dificuldades da criança;
- Faça elogios pontuais sobre os avanços dela. Dizer que melhorou não adianta, prefira: essa letra “o” está muito boa, porque encosta na linha e está na altura das outras;
- E por último e mais importante, auxilie a criança de forma leve, com o treino certo ela vai melhorar e depende do adulto se ela vai guardar uma memória positiva ou um trauma em relação a isso!
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Interessante como o julgamento não se aplica! Gostei muito de suas colocações sobre “procrastinação e preguiça”, realmente não contribuem, meus filhos fazem seções de terapia e já presenciei várias vezes .. é como se fosse pra mim.